Page 117 - Da Terra
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COVAS DO PÃO                                                             SAIBRO


 Era  a  tormenta  das  senhas,  ou  antes  ainda.  Era,  digamos  assim,  um  temporal  de   Um beijo na boca fechada do campo, as cinzas crescendo para dentro do corpo, o corpo liquescido para um jarro,

 horrores já fermentados. Ninguém matava a fome senão por sinais de fumo que de   servido à mesa como sangue repar do em taças de prata, o vinho de Deus, o pão de Cristo, as luzes de Natal a
 longe a longe traziam no cias de fora. Permitam-me que acene ao passado e lhe dê os   piscarem no céu, fogo-de-ar  cio à extensão das estrelas e as estrelas a explodirem, todas ao mesmo tempo e em

 bons dias, convidando-o a sentar-se neste presente amassado a recibos verdes com o   sintonia com os cascos da terra, enquanto vulcões irrompem dos picos e a lava cobre as longas coxas dos vales. Aos
 futuro entregue à sorte de cautelas e de raspadinhas. Falaram-me de outrora dizendo   meus inimigos,  o trato das or gas, canteiros de ervas daninhas regadas pelo mijo dos sapos, muros grafitados com
 que só a miséria não era então racionada, havia que chegasse para todos e todos com   dedos fugi vos. Os dedos dos fugi vos largam pedaços de carne, partem as unhas nas ranhuras do saibro. E a gente,

 ela enchiam a barriga de fragores famintos e sedes várias. Ó, não, não pranteemos   amorosamente entregue aos inimigos, a gente faz uma papa do cimento, come as unhas estaladiças, rega os campos
 copiando Maria Parda pelas ruas de Lisboa. Estamos na província, faz frio mas os pés   com a lava ver da sobre as coxas dos vales corridos a vau. Uma bica de pedra talhada, ape tosos flocos de neve, a
 estão calçados e já não há peixes no rio. Há quem morra por haver emba do contra   neblina atapetando o pasto do gado. Tenho um gato de madeira a recuperar-me o calor, tenho cestos de parras que

 fronteiras de gelo, sejamos sensíveis, tenhamos algum pudor. Aqui, apesar de tudo,   dão uvas ácidas, adubo os meus inimigos com o vinagre das uvas, amo-os avinagrados, degusto-os, bebo-os de um
 está-se dia a dia enceleirado até que num gesto repen no façam de nós qualquer coisa   trago como se fossem chá verde. Electrocardiograma: celebra-se o aniversário, mas ninguém festeja o segundo
 com proveito. Hoje frequentamos diariamente os funerais do pão, enterramo-lo no   seguinte. O segundo seguinte esconde-se num condomínio fechado, reúne-se à porta de uma esquadra abandonada

 estômago besuntado com gordura depois de o mergulharmos no café, no leite, nos   e reclama o direito a ser festejado. O segundo seguinte pressente que também tem direito a ser festejado, assim
 molhos do guisado. Já não precisamos de ir aos moinhos pela calada, comprando pelo   como o segundo seguinte ao segundo seguinte e o segundo seguinte ao segundo seguinte ao segundo seguinte e

 triplo do preço o pó branco desejado. Há sempre alguém que ganha com a guerra, é   assim sucessivamente. Todos os segundos reclamam os seus direitos, sentem-se discriminados, ninguém os festeja,
 certo. E são tantos os que perdem, a maioria. Também não garan mos que o tempo não   não entendem que o aniversário seja celebrado e que o segundo seguinte ao aniversário seja esquecido como um
 volte para trás. D. Quixote o sabia, por isso se a rou aos moinhos com fúria. Lá dentro,   camponês explorado em quintas onde a bebida é sempre pouca. O segundo seguinte aparece nas provas, levanta os
 protegidos, os agiotas misturavam farinha com areia para que o peso da pobreza fosse   braços, vai à missa, celebra a sua cerimónia, contacta especialistas com o objec vo de perceber a dinâmica do

 o certo. Está na hora de reabilitarmos a figura do moleiro, é o que vos digo, fazermos   campo, a boca fechada do campo. O batoque da vasilha não pode ser posto se o vinho não  ver fermentado. Caso
 com ele o que fizemos aos moinhos, cortando-lhes as asas para que as mós se calassem   contrário, abafa no segundo seguinte. Se nos atentarmos, escutamos o vinho a borbulhar no interior da vasilha.É

 deixando os turistas em paz no alojamento local, rural, frugal. Experimentar o campo   preciso fazer uma mesa redonda, construir um muro em torno da mesa, deitar o muro abaixo depois de delinearmos
 como quem compra bilhete para um concerto, é um  po de progresso como qualquer   uma polí ca de reconstrução, de reestruturação. É preciso baixar a balsa para o engaço não ganhar azedo. É preciso
 outro. E, do mal o menos, às portas da Europa há quem pereça por haver emba do   retroceder o jacto dos vulcões para dentro das máquinas propulsoras. São ves gios que não facilitam a descoberta

 contra fronteiras de gelo. Agora é a nossa vez de vender à porta fechada, fugindo ao   da verdade porque a verdade não está nos ves gios mas no que a eles é anterior: cava-se a vinha antes de plantar o
 fisco com buracos no quintal onde enterrar bilhas de azeite e alqueires de grão e   bacelo, enxofram-se as plantas, dá-se ar às uvas desparrando, esladroam-se as vides dos seus inimigos, adiante.
 almudes de vergonha. Marquemos o pão com a cruz da nossa guerra, a indolência.  Os ves gios estão sempre em segredo de jus ça, são uma base de dados em falta, um exame pericial pós-coito.


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